Descendente de uma das famílias mais ricas do Brasil reúne integrantes de uma nova geração de milionários, que se compromete a doar ao menos 10% de sua herança
A mulher de 30 anos e expressivos olhos verdes ergue a garrafa plástica de água mineral que está sobre a mesa e a sacode. “Essa água, com certeza, custa mais de R$ 1,90 e tem uma população enorme que vive com R$ 1,90 por dia. Eu fico até arrepiada. É intolerável.”
Marina Feffer é psicóloga e integrante da quarta geração da família que controla a maior fabricante de papel e celulose do Brasil e uma das maiores do mundo, a Suzano. É a terceira de quatro filhos de Ana e David Feffer, o presidente da Suzano Holding, um dos homens mais ricos do país, com uma fortuna estimada em US$ 1,5 bilhão, segundo a revista “Forbes”.
Foi em conversas com algumas pessoas para uma reportagem que procurava descobrir empresários brasileiros favoráveis a políticas de redistribuição de riqueza que o nome de Marina e de seu projeto vieram à tona. Depois de uma aproximação via Linkedin que se prolongou pelo WhatsApp, ela concordou com um encontro para falar do Generation Pledge, que desenvolve há um ano e meio. A confeitaria Dama do shopping Iguatemi, na capital paulista, foi o lugar escolhido para este “À Mesa com o Valor”.
O Generation Pledge (algo como Compromisso de Geração) busca reunir herdeiros de grandes fortunas em torno de um propósito comum. Para se tornar um “pledger” é preciso assumir o compromisso moral de doar ao menos 10% de sua herança nos cinco anos subsequentes ao seu recebimento. E não é só isso. A organização, sem fins lucrativos, quer influenciar também as escolhas que esses herdeiros farão para destinar o restante de seu patrimônio.
Trabalhamos com uma comunidade de herdeiros comprometidos em fazer impacto com os recursos aos quais têm acesso
“O GP existe para destravar bilhões de dólares que podem ser alocados para financiar as soluções mais eficazes dos nossos desafios globais. Trabalhamos com uma comunidade de herdeiros comprometidos em fazer impacto com os recursos aos quais têm acesso”, define Marina.
Desde que começou a se movimentar até agora, ela conseguiu reunir 34 herdeiros com visão semelhante à dela. “Nossos ‘pledgers’ são internacionais. São 34 indivíduos, de 23 a 60 anos. Metade brasileiros e metade de Estados Unidos, Holanda, França, Inglaterra, Bélgica, Índia, México, Alemanha, Cingapura e Egito.” Em três anos, a estimativa é chegar a 300 pessoas comprometidas.
Logo depois de se sentar e pedir apenas um café expresso, Marina se propõe a contar sua história. Quer que a repórter entenda o que a levou a idealizar o Generation Pledge. “Quando nasci, já era uma família que tinha relevância no meio empresarial do Brasil e muito da nossa governança já estava constituída. Sou a terceira filha de quatro irmãos, e meu pai é o mais velho dos irmãos dele. Então, muita coisa já existia. Acho que o que não passou batido por mim foram as questões de olhar para o outro e me deixar tocar por diferenças que me espantavam já desde muito cedo”, afirma. “Minha experiência, tendo nascido nessa família, foi muito difícil. Como criança e adolescente, eu sofri. Eu tinha vergonha da minha família, me sentia muito desconectada do universo onde nasci e ao mesmo tempo me sentia muito desconectada da sociedade em geral, que também não era a minha história.”
Desde criança, conta, se incomodava com as diferenças sociais e, no limite, com o fato de o valor atribuído à vida das pessoas variar de acordo com a quantidade de dinheiro que possuem. “Quando criancinha, essas perguntas eram muito nítidas. Eu tinha uma sensação de intolerância. Como adolescente, comecei a dar nome a esses sentimentos, e, como jovem adulta, eu transformei esse incômodo em trabalho.”
É uma moeda que pode se dar ao luxo de tomar (…) risco e de modelar o pensamento social dos indivíduos. Sou apaixonada por esse tipo de filantropia
Na adolescência, criava esquemas para fugir à proteção da família. “Eu precisava andar na rua e ver as coisas por mim.” Nas escapadas rotineiras, explorava coisas diferentes. Uma amiga dava aulas de teatro numa favela do Capão Redondo, distrito da região sul da cidade de São Paulo, e Marina a acompanhava para participar dessas aulas ou ensinar inglês. Outras vezes, entrava no carro de amigos e rodava pela cidade “para ver as coisas”. “Eu conversava com os moradores de rua para entender por que estavam lá, se era por escolha, por desestrutura social. Eu tinha necessidade de conhecer as histórias e entender as maneiras diferentes das pessoas pensarem.”
Na juventude, a faculdade de psicologia veio quase que naturalmente. “Eu tinha interesse pelo indivíduo, mas queria fazer essa ponte do indivíduo com a construção social. Se o desequilíbrio social e a falta de oportunidades com mais equidade eram o tema da minha vida, eu sabia que existiam pessoas com poder muito grande de tomada de decisão e queria entender por que essas pessoas pensam do jeito que pensam.”
Durante o curso na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, Marina se voltou para questões públicas. Trabalhou durante um ano na Penitenciária Feminina de Santana, no lugar onde funcionou o antigo Carandiru, dando atendimento psicológico às presas. “Trabalhei também em abrigos, entendendo toda a tessitura social que se rompe e como a política pública de abrigo acontece.”
Aos 22 anos de idade, o primeiro emprego depois da faculdade foi em um Centro de Atenção Psicossocial (Caps), do governo federal, em Guarulhos. Marina lembra de ter escondido dos pais a informação do que era exatamente seu trabalho. Duas vezes por semana, tinha de ir à casa de um rapaz que precisava de atendimento, mas se recusava a ir ao Caps. “Eu comprei um carro que pudesse ser blindado, mas que fosse discreto. Parava no meio de uma favela e andava dez minutos a pé.”
Filho de um catador, o paciente vivia isolado em uma casa dentro de um lixão e havia quatro anos não tinha vínculos sociais com ninguém. “Ele fazia cocô no chão, dormia num colchão em cima do cocô e não conseguia mais falar direito. Eu não sei como eu suportava, mas eu não sentia o cheiro.” Na primeira vez em que entrou na casa, Marina diz ter tido uma reação quase que automática de sair, ir até a loja mais próxima, comprar um par de galochas e voltar. “Fiquei trabalhando lá um ano. No fim do tratamento, ele aceitou ir ao Caps. Conseguimos flexibilizar uma política de que não se podia entrar lá sem sapatos, porque ele não usava. E aí eu fui embora.”
Com a xícara já vazia, Marina faz uma breve pausa e pede uma água à garçonete. “Sem gás, por favor.” Já perto da hora do almoço, passa batido pelo mil-folhas (diferentemente da repórter), um dos muitos doces criados pelas cunhadas Daniela e Mariana Gorski, proprietárias da confeitaria Dama. A gastronomia, aliás, também tem uma conexão com a vida de Marina. Ela é casada há um ano com Daniel Oelsner, de 42 anos, que possui três marcas de restaurantes no Rio e em São Paulo: Venga, Teva e Olívia Saladas – os dois últimos são empresas B, que visam como modelo de negócios o desenvolvimento social e ambiental.
Marina tem pós-graduação em psicanálise e passou três anos atendendo num consultório particular. Dos 15 aos 22 anos, afirma que se sentiu muito distante da família. O pai, David, diz ela, foi muito importante na jornada profissional a partir daí. Ele costumava provocá-la, questionando-a por que ela escolhia trabalhar com indivíduos. “Ele dizia: ‘Você tem potencial de trabalhar com escala, tanto pela família de onde você vem quanto pelo seu perfil individual’. E eu ficava tão brava com ele, porque achava desrespeitoso não valorizar o indivíduo”, recorda-se. “Mas, depois, eu entendi que não era isso que ele estava dizendo, e foi crucial para eu dar um salto.”
Aos 22 anos, outro fator essencial também entrou em cena. Foi quando começou a participar, junto da família, de programas de desenvolvimento de acionistas, de formação de herdeiros. “Pela primeira vez, comecei a olhar de forma estruturada para famílias empresárias, empresas familiares, ver o que era esse universo. E, depois de um tempo, me deu um estalo. Entendi que, se queria promover transformação social com o máximo de potencial possível, eu estava sendo muito irresponsável em não usar a plataforma da minha família. Pela primeira vez compreendi isso profundamente e senti uma vontade de ocupar esse lugar.”
Quando essa ficha caiu, foi ao armário da mãe, Ana, pegou várias roupas sociais, as ajustou, e saiu em busca de um emprego numa grande empresa. Por intermédio de um professor da PUC, conseguiu trabalho na área de sustentabilidade de uma multinacional de controle familiar, numa aproximação com sua história. Ficou três anos no emprego, ao mesmo tempo em que se aprofundava na governança do grupo de sua família. Até hoje, Marina é trainee no conselho de acionistas da Suzano Holding, está também no conselho familiar e no conselho da fundação filantrópica dos Feffer, a AryMax.
Ao deixar a multinacional, chegou a achar que o caminho natural talvez fosse trabalhar na Suzano. Mas concluiu que era hora de reunir suas vivências até então em torno de algo que vinha ficando cada vez mais claro para ela. “Quem vive nesse universo de ‘ultra-high-net-worth’ [patrimônio pessoal ultra-elevado] muitas vezes não tem a oportunidade de exposição a certas experiências que ajudam a modelar um pensamento voltado para o mundo e para o outro. E isso é sério, é profundo, não é arbitrário.”
Veio, então, a decisão de trabalhar com famílias e indivíduos com muito dinheiro, e a primeira empreitada nessa direção foi com a consultoria Zest Impact, criada dois anos e meio atrás em sociedade com um amigo de infância que Marina reencontrou e que estava na mesma trilha que ela. A consultoria ia bem, atendendo a alguns clientes, quando perceberam que havia espaço para algo que, em sua visão, poderia alcançar uma escala maior.
“Ao longo dos próximos 15 anos, vai acontecer a maior transferência de riqueza entre gerações da história da humanidade. E a gente sabe disso. As pessoas que vão herdar esse patrimônio
amanhã, nós também sabemos quem são. Então, a pergunta é: nós, herdeiros, estamos tendo a oportunidade de sermos expostos à informação necessária para nos prepararmos para tomar as decisões que a gente pode, deve e quer? Hoje, digo com muita convicção que a resposta é não.”
O Generation Pledge começou a tomar forma, segundo Marina, para ajudar os herdeiros a se abrirem, se confrontarem e ampliarem o nível de consciência a respeito do papel que podem ter
no mundo. “Senti que esse era o chamado. É um projeto para mexer com a cultura do dinheiro em famílias ‘ultra-high-net-worth’. E eu me trabalho muito, de verdade, para estar a serviço disso. Porque é algo que precisa acontecer.” Ela entende que tem um ativo importante a seu favor: o acesso às pessoas desse universo. “E é um acesso que vem com confiança, porque é par. É chegar junto.”
Como entidade sem fins lucrativos constituída nos Estados Unidos, o Generation Pledge atua em duas frentes. A primeira é como uma comunidade. “Nas entrevistas com as primeiras pessoas que se comprometeram, vemos essa necessidade de criar um senso de pertencimento. Um espaço onde conseguimos falar sobre os sentimentos, nossa questão moral, sobre o efeito do dinheiro na nossa vida, sobre o quanto a gente se sente protegido ou não, de como isso gera medo, do quanto isso pode reduzir nosso apetite por risco. Do quanto a gente se sente merecedor do que vamos herdar. Conversas dessa natureza.”
Marina diz chorar em muitas dessas interações com os demais herdeiros. “São conversas de sentido de vida, de se humanizar. Todo mundo precisa fazer o processo de autorreflexão de o que eu consigo fazer a partir do lugar em que estou. Para pessoas que vêm de um universo de tanta oportunidade, de acesso, de influência, de patrimônio, essa é uma questão que tem especificidades não negligenciáveis. A desproporção patrimonial no mundo é muito significativa.”
A segunda frente de atuação do Generation Pledge diz respeito aos aspectos práticos do que fazer com as heranças. A abordagem é de portfólio completo, em três partes. A primeira é a filantropia e envolve o planejamento do destino que será dado aos 10% do patrimônio que serão doados. “A gente pensa a filantropia de forma estratégica e não da forma bobinha como historicamente se fez. Com alinhamento científico e uso de muita inovação. A filantropia, se benfeita, é um tipo de moeda hiperespecial, porque o único compromisso que assume é o do retorno de impacto. É uma moeda que pode se dar ao luxo de tomar muito risco e de modelar o pensamento social dos indivíduos. Sou completamente apaixonada por esse tipo de filantropia.”
A segunda parte do portfólio é a dos investimentos financeiros, em que a ideia é ajudar a implementar um olhar de impacto dentro dos “family offices” que fazem a gestão do dinheiro. “Estamos falando desde como excluir aqueles investimentos que geram externalidades sociais e ambientais negativas até chegar aos investimentos de impacto positivo propriamente, que ainda não são uma área consolidada no mundo.”
Por fim, para os indivíduos que têm uma participação ativa nos negócios familiares, a intenção é ajudar na formação para o que chama de “active ownership”. “Como você usa a sua influência para promover mudanças nas empresas? Tanto a partir de conselhos de administração quanto como executivos. Essa também é uma peça fundamental e tem muito estudo e metodologia desenvolvidos a respeito.”
Embora a entidade trabalhe com herdeiros, que, na média, levarão ainda décadas para de fato assumir a gestão do dinheiro, Marina diz que o impacto começa a ser gerado antes, desde já.
“Não é um compromisso da morte. Não é no momento em que seus pais morrem que você começa a fazer impacto. É uma oportunidade de trabalhar entre gerações. Entender o que é
importante para a geração atual, que controla o patrimônio, e como alinhar olhares e ter oportunidade de fazer junto”, diz ela. “O mundo tem pressa.”
Para fazer tudo isso, o Generation Pledge quer atuar como uma plataforma na qual podem se plugar todas as organizações e empresas parceiras que trabalham com impacto. Ou seja, a ideia não é ter especialistas em investimento, em governança, em sucessão, por exemplo, dentro de sua equipe. A entidade também não gera o dinheiro dos associados e nem passam por ela os recursos a serem destinados à filantropia. Como entidade sem fins lucrativos, a GP vive, ela própria, de doações e paga um salário à equipe, inclusive para Marina.
Já ao fim do encontro, a repórter comenta que, como herdeira, Marina tem a oportunidade de assumir um trabalho sem se preocupar com o retorno financeiro e a construção de patrimônio. A entrevistada, então, demonstra ter uma visão ainda mais radical sobre a acumulação de riqueza. “Hoje eu preciso ganhar dinheiro porque essa é a minha realidade, eu ainda não herdei nada. Mas há também uma outra pergunta: que estilo de vida eu quero ter? Se todo mundo se perguntar quanto é suficiente para viver, e viver bem – e cada um entende o suficiente de uma forma, acho que não precisa ter um olhar de julgamento -, é possível estabelecer um número a partir do qual o dinheiro estaria disponível. Esse é um pensamento que, quando você começa a olhar para impacto, é muito natural. Mas não é um pensamento comum. A voz dominante no mundo, hoje, é no sentido de crescer e preservar patrimônio. Mas, se você segue essa voz apenas, o que está criando?”
Fonte: Valor Econômico | Por Vanessa Adachi